Julie Andrews teve uma vida marcada pela música. Cantou para reis — como George VI, em 1948 — e líderes mundiais, encantando plateias com sua voz melódica e moldando o universo musical como poucas pessoas seriam capazes. Blake Edwards, seu segundo marido, era o responsável por filmes consagrados, como a saga A Pantera Cor-de-Rosa e Bonequinha de Luxo. Era natural esperar que a união desses dois talentos resultasse em algo grandioso — e foi exatamente isso que aconteceu com Victor/Victoria, lançado em 1982. Essa comédia musical, que chegou aos cinemas no início da era Reagan, é um dos melhores trabalhos da dupla, e é sobre ela que falaremos hoje.

Le Jazz Hot

A história se passa na Paris de 1934, onde conhecemos Victoria Grant (interpretada por Andrews), uma soprano talentosa que enfrenta dificuldades financeiras e acaba sendo despejada de seu quarto de hotel. Em uma noite chuvosa, cruza o caminho de Carrol Todd — um homossexual desempregado — e os dois desenvolvem uma amizade imediata. Após seu vestido encolher por causa da chuva, Victoria improvisa um pijama com as roupas de um ex-amante de Todd.

Na manhã seguinte, quando o rapaz vai buscar suas coisas e a encontra usando seu terno e chapéu, Toddy percebe que ninguém a reconheceu. É então que tem uma ideia ousada: Victoria se passará por um homem e será apresentada como transformista ao mais requisitado agente de Paris, se apresentando nas casas noturnas mais badaladas da cidade. Com o cabelo cortado e vestida como o Conde Victor Grezhinski — um suposto transformista polonês —, Victoria engana a todos e conquista o público com uma performance eletrizante. Nesse mesmo momento, entra em cena o gângster King Marchand, que se encanta pelo show de estreia de “Victor”, mas passa a investigar se está apaixonado por uma mulher disfarçada ou por um homem.

A partir daí, o filme envereda pelos caminhos típicos das comédias de Edwards, com personagens descobrindo (ou quase descobrindo) o segredo, enquanto Julie Andrews brilha alternando entre suas versões de “Victor” e “Victoria”. Embora não seja exatamente convincente como homem, Andrews é o coração do filme, entregando uma protagonista carismática e impossível de não se gostar. As músicas estão no tom certo, e os números musicais são memoráveis. “Le Jazz Hot”, que apresenta “Victor” ao público, é uma sequência deliciosa de assistir e ouvir, com Andrews dominando cada nota com maestria.

Apesar de certos aspectos do filme terem envelhecido, o longa permanece divertido e tocante à sua maneira. Hoje, muitos podem se identificar com os dilemas de Marchand em relação à sua própria sexualidade, tornando o filme ainda relevante. Quarenta anos depois, Victor/Victoria continua sendo um clássico e um dos pontos altos na carreira de Andrews e no repertório de Edwards.

Como assim “O último musical”?

Victor/Victoria foi um sucesso de crítica e público. A performance de Julie Andrews foi aclamada e lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Atriz, além de uma indicação ao Oscar (perdeu para Meryl Streep por A Escolha de Sofia). Muitos acreditam que Andrews merecia a estatueta, considerando sua atuação como uma das melhores daquele ano.

Em 1995, Blake Edwards decidiu adaptar o filme para os palcos da Broadway, com Julie retornando ao papel principal aos 60 anos. No entanto, a peça recebeu críticas mistas — muitos apontaram que Edwards não conseguiu transpor a magia do cinema para o teatro. Ainda assim, Andrews foi indicada ao Tony pelo papel, sua única indicação ao prêmio. Demonstrando humildade, recusou a indicação em solidariedade à equipe, alegando que outros aspectos da produção também mereciam reconhecimento.

Em 1997, Julie deixou o musical após perceber uma rouquidão persistente em sua voz. No mesmo ano, passou por uma cirurgia para remover nódulos não cancerígenos da garganta — um procedimento que comprometeu sua capacidade de cantar permanentemente. A perda de sua voz foi um golpe profundo, mas não impediu que continuasse ativa na carreira.

Em 1998, dublou a arara Polinésia no revival de Dr. Dolittle. Em 2000, foi condecorada Dama do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II. E, em 2001, voltou às telas em O Diário da Princesa, interpretando a Rainha Clarisse, avó da protagonista. Na continuação, lançada em 2004, cantou pela primeira vez desde a cirurgia, em um dueto com Raven-Symoné. Embora o filme tenha recebido críticas negativas, o momento é lembrado até hoje como um símbolo de sua resiliência vocal.

Desde então, Julie Andrews não apareceu mais nos cinemas, mas segue ativa. Apresenta um programa infantil na Netflix, consolidou-se como autora (recentemente publicou suas memórias) e emprestou sua voz a grandes franquias como Shrek, Meu Malvado Favorito e Aquaman. Seu trabalho mais recente é como a narradora Lady Whistledown na série de época Bridgerton, mais uma prova de que, mesmo com a voz transformada, Julie Andrews segue encantando o público com seu talento atemporal.

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