Quando tento convencer outras pessoas a lerem “Fun Home”, eu digo que é “uma dupla autobiografia reversa em quadrinhos”. É uma descrição exagerada de propósito, mas serve para chamar a atenção dos outros pro livro. Publicado em 2006 pela cartunista Alison Bechdel, o livro relata o difícil relacionamento da autora com o próprio pai, terminando com a morte (possivelmente suicídio) do mesmo em 1980. Cheio de cartas, memórias e referências, o livro estrutura a história dessa relação pai-filha em dois tempos contrários. Ao mesmo tempo em que acompanhamos a Alison criança e seus conflitos com o pai, temos o comentário e o conhecimento da Alison adulta recontextualizando cada interação entre ambos. E, no centro desse caleidoscópio temporal, os dois se encontram como figuras queer em busca da própria identidade.

Quase todo mundo já se perguntou “quem sou eu?”. Mas eu, pessoalmente, prefiro a pergunta “como sou eu?”. Se construir como ser humano significa construir uma história pra si mesmo, especialmente quando definimos nossa identidade através de rótulos e de pertencimento a comunidades. O que nos lembramos de ter acontecido, e as formas como encaixamos essa memória dentro de nossa história de nós mesmos, é muito mais importante do que o que realmente aconteceu.

Esse exercício constante de contar histórias sobre si mesmo leva a uma forma diferente de enxergar o tempo e si mesmo. Surge uma “temporalidade queer”, onde muitas vezes ignoramos o tempo linear. Retornamos ao passado para investigar causas e consequências, fazer conexões, procurar sinais. “Eu deveria ter percebido antes que era queer” é uma frase recorrente. “Fun Home” reconstrói essa experiência de autointerrogação em forma de quadrinhos. É uma história cheia de retornos, espelhos e labirintos, referências e retomadas, simulando a experiência da dúvida sobre si mesmo.

Com seus inúmeros retornos e redescobertas, Fun Home trabalha a existência queer como um constante trabalho de reconstrução. Mais do que apenas indivíduos, somos cada um herdeiros de uma tradição estranha e complexa, últimos membros de uma linhagem oculta. Em suas jornadas de autodescoberta, pai e filha constroem as próprias imagens não apenas um em oposição ao outro, mas com a ajuda de inúmeros livros e obras de arte. Ao longo da obra, Alison visita Nova Iorque pós Protestos de Stonewall, comenta sobre a sexualidade de Marcel Proust, descobre os affairs do pai através de fotos e entende pela primeira vez o que é um orgasmo ao ler a definição da palavra em um dicionário. A experiência do si é não apenas filtrada, mas também construída através do encontro com outras histórias.

Fun fact pra terminar: Alison Bechdel é também responsável pelo “teste de Bechdel” usado pela crítica feminista para investigar a presença feminina em filmes. O teste foi descrito pela primeira vez (como piada) em uma das tiras da sua série Perigosas Sapatas.

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