Em homenagem aos 60 anos da Rede Globo, a emissora produzirá um remake de um de seus folhetins de maior sucesso: ‘Vale Tudo’, obra que deu origem a uma das maiores vilãs da teledramaturgia brasileira, Odete Roitman. A autora da nova produção afirmou em várias entrevistas recentes que a trama e a vilã — agora interpretada por Débora Bloch — serão reimaginadas para refletir ideais contemporâneos e mudanças de pensamento desde o lançamento original. Muitos entusiastas do audiovisual brasileiro manifestaram-se sobre a decisão de transformar Roitman em uma “mocinha”, alegando que isso a despirá de seus significados e alegorias.

Esse dilema faz parte do mundo do entretenimento há anos: grandes vilões estão se tornando figuras cada vez mais escassas.

Antagonistas sempre existiram em livros, peças e outras formas de arte; mas, com a chegada do cinema e da televisão, surgiram diferentes tipos de rivais, que buscavam refletir os dilemas e tensões da época. Por exemplo, muitos vilões e ameaças nas produções das décadas de 1950 e 1960 representavam o medo do comunismo e seu conflito iminente com o Ocidente. 

Com o passar dos anos, estúdios começaram a desenvolver vilões mais complexos e multifacetados. No entanto, humanizar esses antagonistas pode torná-los desinteressantes, mesmo que, em um primeiro momento, pareçam narrativamente inovadores. Filmes como Malévola, Cruella, Ratched e Coringa tentaram seguir a mesma fórmula do musical Wicked, recontando as histórias de vilões icônicos e explicando suas origens. No entanto, essas produções, ao revisitar e alterar a essência dos personagens, acabam diluindo seu charme: Malévola, a autoproclamada “senhora de todo o mal”, agora é a heroína que desperta a Bela Adormecida? Cruella De Vil não desejava peles de dálmatas por vaidade, mas por traumas de infância? Como entretenimento leve ou estudo de personagem, esses filmes até podem funcionar, mas não vão muito além disso.

Com o mundo de 2024 mais sensível e atento a questões sociais, criar vilões como simples agentes do caos e da destruição tornou-se um desafio. Muitos autores evitam desagradar setores mais críticos do público, cientes de que a repercussão nas redes sociais pode determinar o sucesso ou o fracasso de uma obra. Assim, personagens acabam moldados por decisões políticas, o que pode tanto enriquecer quanto prejudicar suas narrativas. 

Filmes e séries das décadas de 2010 e 2020, por sua vez, introduziram a noção de “trauma geracional” como motor das histórias, substituindo os vilões tradicionais pelos traumas vividos pelos personagens. Em alguns casos, essa abordagem funciona sem se tornar repetitiva; no entanto, é preciso mais do que conflitos familiares para sustentar uma narrativa envolvente. Uma história centrada apenas em um trauma entre avó e neta não é suficiente para criar um enredo cativante. 

A integração de agendas políticas nas narrativas — embora muitas vezes positiva — pode esvaziar o carisma dos personagens. Mudanças como a remoção de versos da música “Poor Unfortunate Souls” ou a decisão de eliminar o uso de peles na nova versão de ‘Cruella’ refletem discussões atuais sobre questões ambientais, sociais e de gênero. Contudo, é importante lembrar que vilões podem ser condenáveis simplesmente por seu prazer em fazer o mal, sem necessidade de redenção ou justificativas trágicas. Afinal, nem todo vilão precisa ser humanizado.  

Há, no entanto, exemplos recentes que equilibram essas duas abordagens. O live-action de Cinderela e a novela Todas as Flores oferecem retratos interessantes de suas antagonistas. Lady Tremaine, de Cinderela, possui um passado trágico que não valida, mas justifica suas atitudes cruéis em relação a Ella. Já em Todas as Flores, as vilãs de João Emanuel Carneiro são deliciosamente desprezíveis e interpretadas com o mesmo carisma que consagrou as clássicas vilãs da teledramaturgia brasileira. 

O futuro de Odete Roitman, agora sob o comando de Manuela Dias, ainda é incerto e dependerá da recepção do público. No entanto, uma coisa é certa: as vilãs que amamos odiar fazem falta. Mesmo que possam incomodar determinados grupos sociais e intelectuais, personagens que são más sem motivo algum ainda ocupam um espaço especial no imaginário coletivo.  

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