A relação da Walt Disney Company com a comunidade LGBT é, no mínimo, complexa. Em 2022, após declarações infelizes do então CEO Bob Chapek, membros da comunidade LGBTQIA+ que atuam em diferentes setores da companhia começaram a manifestar publicamente sua insatisfação com a postura da Casa do Rato. Frequentemente, a representação dessas minorias é quase nula, reduzida a elementos facilmente editáveis ou suprimíveis em exibições em países com viés conservador, como China e Oriente Médio.

Quando algum material ousa explorar essas questões de maneira mais profunda, a resposta institucional muitas vezes é o cancelamento precoce. Esse, infelizmente, é o caso de ‘The Owl House’ (2020–2022), uma das séries animadas mais aclamadas do Disney Channel. Sua terceira temporada foi drasticamente reduzida, com a criadora Dana Terrace recebendo apenas três episódios especiais, de pouco mais de uma hora cada, para concluir uma história construída com esmero e carinho ao longo de anos.

Mas afinal, o que é ‘The Owl House’?

A série acompanha Luz Noceda, uma adolescente latina, criativa e sonhadora, que acidentalmente entra no mundo mágico das Ilhas Ferventes. Lá, decide treinar como bruxa sob a tutela da excêntrica e poderosa Eda Clawthorne — a “Dama Coruja”. O que começa como uma aventura fantástica se transforma em uma jornada profunda de autoconhecimento, abordando temas como identidade, opressão sistêmica, amizade, amor e resistência.

Seguindo a tradição de produções como ‘Hora de Aventura’ e ‘Steven Universo’, ‘The Owl House’ combina episódios independentes com uma narrativa ampla, que atravessa temporadas e desenvolve profundamente seus personagens. Em seu arco principal, a série apresenta uma crítica explícita ao fanatismo religioso, personificado na figura do imperador Belos — um vilão que remete aos clássicos da Disney, mas cujas atitudes carregam um peso sombrio e imperdoável.

‘A Casa Coruja’ é uma joia rara da animação contemporânea: une fantasia sombria, humor irreverente, representatividade corajosa e um coração vibrante que encanta públicos de todas as idades. O visual da série é um espetáculo à parte. As Ilhas Ferventes têm uma estética grotesca e colorida que remete tanto às obras de Hieronymus Bosch quanto ao estilo de ‘Adventure Time’, misturando o belo e o estranho em doses iguais. A animação é fluida, criativa e brinca com diferentes gêneros, transitando entre o horror e o pastelão cartunesco com naturalidade e coesão.

O grande trunfo da produção está no equilíbrio entre o absurdo encantador e a construção emocional madura de seus relacionamentos. Destaque especial para o romance entre Luz e Amity. Luz é uma protagonista imperfeita e adorável, cuja jornada ressoa com qualquer pessoa que já se sentiu deslocada. Amity Blight, inicialmente uma rival, torna-se seu interesse amoroso em uma evolução narrativa sensível e cuidadosa. ‘The Owl House’ tornou-se, assim, a primeira série da Disney a apresentar um casal adolescente LGBTQIA+ como protagonistas, tratadas com naturalidade e respeito. Outros laços, como a conturbada e afetuosa relação entre Eda e sua irmã Lilith, adicionam camadas dramáticas complexas à narrativa.

Dana Terrace assumiu riscos criativos importantes ao conceber a série — e por isso pagou um preço. A justificativa oficial do cancelamento foi que ‘The Owl House” não se encaixava no “padrão Disney de qualidade”, argumento que soa ambíguo diante da paixão do público e da crítica. Mesmo com o tempo limitado, Terrace conseguiu concluir a história de maneira digna e emocionante. Apesar de interrompida em seu auge, a série não decepciona.

“The Owl House” é um marco na história da animação televisiva — não apenas por sua qualidade técnica e narrativa, mas pela coragem de abordar temas relevantes e por dar voz a personagens historicamente marginalizados. Seu cancelamento prematuro escancara as contradições de uma gigante do entretenimento que ainda hesita em abraçar plenamente a diversidade que diz apoiar. Ainda assim, a obra de Dana Terrace permanece como um farol: uma lembrança mágica e poderosa de que a fantasia também pode ser resistência.

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