Atacada diversas vezes, a representação de relações homoafetivas em mídias infantojuvenis ainda precisa ser feita com cuidado — não no sentido de omissão, mas de responsabilidade. É necessário apresentar ideais que permitam que indivíduos em processo de autodescoberta se sintam acolhidos. Uma figura central nesse movimento foi Rebecca Sugar, que, com decisões pontuais em “Hora de Aventura” e, posteriormente, com a criação de “Steven Universo”, abriu caminho para uma nova abordagem da representatividade LGBTQIAP+ nas produções voltadas ao público jovem.

Rebecca Sugar, que se assumiu como pessoa não binária durante a produção de sua série, sempre deixou claro que seu objetivo era criar um espaço onde crianças queer pudessem se enxergar nas histórias que consumiam. Em entrevistas, a criadora falou sobre a dor de crescer sem referências positivas de sua identidade na mídia — e sobre o senso de responsabilidade em mudar esse cenário para as novas gerações.

Como produtora e compositora nas temporadas iniciais de “Hora de Aventura”, Sugar foi uma das principais responsáveis pelo desenvolvimento do relacionamento entre Marceline, a Rainha dos Vampiros, e a Princesa Jujuba. Ambas, no início da série, demonstravam interesse amoroso pelo protagonista Finn, mas com o tempo, especialmente graças à influência de Sugar, a relação entre as duas foi ganhando profundidade e espaço, culminando em um dos casais queer mais marcantes da animação contemporânea.

Eventualmente, Sugar deixou “Hora de Aventura” para se dedicar à criação de sua própria série: “Steven Universo”. Tornou-se, assim, a primeira mulher a comandar sozinha uma animação no canal Cartoon Network. E fez história. Não apenas inovou na estética e estrutura narrativa, mas ousou realizar o que muitos julgavam impossível: integrar, de forma clara e respeitosa, personagens e relacionamentos LGBTQIAP+ em uma obra voltada a crianças e adolescentes.

Lançada em 2013, “Steven Universo” acompanha Steven, um garoto que vive entre as Crystal Gems — alienígenas com aparência feminina que protegem a Terra. Sob o véu de aventuras mágicas e canções envolventes, a série constrói um universo onde identidade de gênero, sexualidade e amor são tratados com profundidade e sensibilidade. Tal como em “Hora de Aventura”, a estrutura inicialmente episódica logo se transforma em um arco narrativo complexo e emocionalmente denso.

Com todas as Gems apresentando-se como figuras femininas, a representação de relações homoafetivas se torna mais fluida, sem deixar de explorar suas múltiplas camadas. Personagens como Garnet são fundamentais para a trama, simbolizando o amor queer como algo poderoso, belo e digno de protagonismo. A série aborda temas como identidade de gênero fluida, amor entre pessoas do mesmo gênero e as complexidades emocionais de um relacionamento, sempre com uma linguagem acessível ao público jovem.

Rebecca Sugar sabia que sua obra não agradaria o público mais conservador. Em algumas exibições internacionais, personagens com traços mais masculinos foram modificados para diluir sua ambiguidade. Mesmo assim, a criadora encontrou maneiras de preservar sua mensagem. Nos episódios finais, um casamento queer e um beijo entre personagens centrais foram exibidos sem censura — qualquer tentativa de alterar essas cenas prejudicaria gravemente a compreensão e o desenvolvimento da narrativa.

O impacto cultural de “Steven Universo” é inegável. A série foi celebrada por pais, educadores, psicólogos e, principalmente, por jovens LGBTQIAP+ que, pela primeira vez, se viram representados de forma aberta, respeitosa e sensível. Recebeu prêmios, gerou debates e abriu caminho para outras produções animadas que seguiram seu legado, como “She-Ra e as Princesas do Poder” e “The Owl House”.

Mais do que criar personagens queer, Rebecca Sugar transformou o que significa fazer animação para jovens. Provou que é possível contar histórias profundas, inclusivas e educativas sem abrir mão da leveza ou da fantasia. Mostrou que a infância não é um espaço neutro à diversidade — pelo contrário, é nela que devemos semear o respeito, a empatia e o amor.

Em um mundo que ainda resiste à inclusão de narrativas LGBTQIAP+ na mídia infantil, o trabalho de Rebecca Sugar permanece como um farol. Seu legado não é apenas o de uma série animada, mas o de uma nova linguagem — uma onde todas as crianças, independentemente de quem sejam, possam se ver como dignas de amor, aventura e protagonismo.

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