A epidemia de AIDS na década de 1980 foi um dos momentos mais marcantes do final do século XX, colocando em perspectiva os sistemas de saúde, políticos e religiosos. A forma como a doença e sua fatalidade moldaram o mundo moderno e a cultura pop influenciou a percepção do tratamento das minorias sob as lentes dos políticos e religiosos. Um dos projetos mais impactantes sobre essa temática é a obra-prima premiada de Tony Kushner: “Angels in America”.
O ano é 1985, Ronald Reagan está na Casa Branca e a AIDS está deixando uma trilha de morte. O filme acompanha duas pessoas infectadas pelo vírus em situações extremas: Prior Walters, descendente de uma antiga família, é abandonado por seu namorado emocionalmente distante e passa a ter visões com anjos que o transformam em um profeta. Em contraste com Walters, está Roy Cohn, um promotor lendário aliado ao conservadorismo de Reagan, assombrado por uma mulher que foi eliminada por sua causa.
O projeto de Kushner explora a Era Reagan e a maneira como essa época lidou com os infectados pela Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Repleta de metáforas e analogias, a peça tem cerca de sete horas de duração, divididas em duas noites de espetáculos. A realidade de Prior, abandonado à própria sorte pelo homem que ama, é um triste reflexo da falta de compromisso e responsabilidade afetiva de parcelas da comunidade LGBT.
Em contextos religiosos, “Angels” aborda diferenças religiosas e ideológicas, desde o presságio de que Walter seria um profeta em nome de anjos flamejantes até a tentativa de conciliação em prol de um objetivo comum entre o republicano e mórmon Joe Pitt e o judeu de esquerda Louis Ironson. A hipocrisia liberal e a percepção unilateral da cultura dos EUA são aspectos destacados por um dos personagens mais desenvolvidos da trama, Belize Arriaga.
A sombra constante da AIDS cobre todos os aspectos da narrativa, com a incerteza e o medo provocados pela doença mesclados à falta de organização do sistema de saúde para tratá-la adequadamente. A opinião dos anjos sobre a doença é apresentada, mostrando suas tentativas de reagir a ela.
Roy Cohn, um dos personagens centrais, foi uma figura histórica e controversa na política norte-americana. Ele trabalhou em conjunto com o senador McCarthy para impedir o avanço comunista. O advogado ganhou notoriedade por ter sido um dos primeiros tutores do futuro presidente Donald Trump. Sua representação em “Anjos na América” aborda como o poder e o dinheiro consomem a moral e a decência.
Mesclando o surrealismo de sonhos, visões angelicais e figuras fantasmagóricas judaicas, a atmosfera criada durante “O Milênio se Aproxima” e “Perestroika” – peças que compõem a história – é imersiva e criativa, conferindo um ar fantástico a uma narrativa enraizada na realidade.
Lançada em 1993, “Anjos na América” se tornou um fenômeno cultural, ganhando inúmeros prêmios Tony, tanto em sua versão original quanto em seu revival estrelado por Nathan Lane e Andrew Garfield. A obra também foi adaptada em uma minissérie premiada, estrelada por Al Pacino, Meryl Streep, Jeffrey Wright e Emma Thompson.
Gutural e sem medo de machucar – tanto seus personagens quanto a audiência – “Anjos na América” é um conto preventivo de um momento triste da história americana, mas que reflete a posição dos políticos, da religião e dos sistemas de saúde em todo o mundo. No final das contas, a produção mostra que algumas coisas são maiores do que qualquer doença fatal: amizade, amor e, acima de tudo, fé.