A novela ‘Tieta’ voltou ao imaginário popular brasileiro com sua recente reprise no “Vale a Pena Ver de Novo”, reacendendo o apreço pelo realismo fantástico nacional e por uma das tramas mais marcantes da história da Rede Globo. Exibida entre agosto de 1989 e março de 1990, ‘Tieta’ consolidou-se como um dos grandes marcos da teledramaturgia brasileira. Inspirada no romance ‘Tieta do Agreste’, de Jorge Amado, foi adaptada por Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares, sob direção geral de Paulo Ubiratan. A obra tornou-se um fenômeno de audiência, crítica e impacto cultural — unindo humor, crítica social e sensualidade em uma fábula moderna que redefiniu os limites do que se podia contar em uma telenovela do horário nobre.

A história se passa na cidade nordestina de Santana do Agreste, onde imperam o moralismo rígido, as aparências e a hipocrisia religiosa. Lá vive Tieta, uma jovem rebelde e cheia de vida, expulsa da cidade pelo pai, Zé Esteves, e pelas beatas locais por “comportamento indecente”. Anos depois, ela retorna, cercada de riqueza e rumores. Sua chegada vira a cidade de cabeça para baixo: antigos desafetos se inquietam, paixões são reacesas, segredos vêm à tona.

‘Tieta’ subverte as regras do folhetim tradicional ao incorporar uma linguagem que flerta com a sátira e o realismo mágico . Com personagens caricaturais — como a beata Perpétua, vivida por Joana Fomm, com seu moralismo severo e temor a Deus —, a novela adota o exagero como estética, criando um universo onde o riso é também crítica e onde o grotesco adquire contornos poéticos.

Essa fusão de gêneros remete diretamente à obra de Jorge Amado, mas também dialoga com o espírito da época: o Brasil recém-saído da ditadura militar, vivendo os primeiros anos da redemocratização e revisitando seus próprios mitos com um olhar mais livre — fosse ele político, social ou sexual. A novela é, assim, um reflexo do Brasil dos anos 1980, um país em transição, no qual a televisão começava a se tornar palco de discussões sobre temas até então considerados tabus.

Santana do Agreste representa um Brasil preso ao passado, dominado por coronéis, padres e beatas, mas que, aos poucos, é sacudido pelos ventos da modernidade e da liberdade encarnados por Tieta. No embate entre tradição e mudança, a novela revela um país dividido entre o conservadorismo e o desejo de transformação — mostrando-se mais atual do que muitos folhetins contemporâneos, que, por vezes, evitam tomar posição diante de um cenário político cada vez mais polarizado.

A direção de arte e a fotografia trouxeram inovações notáveis para a época, com locações no sertão baiano, figurinos vibrantes e cenários que mesclavam o kitsch ao regionalismo. A trilha sonora, por sua vez, combinava clássicos nordestinos com composições contemporâneas, criando uma identidade sonora singular.

Além disso, ‘Tieta’ foi uma das primeiras novelas do horário nobre a tratar com ousadia de temas tabus: prostituição, corrupção política, liberdade sexual, moral religiosa, relações homoafetivas (ainda que sugeridas em subtexto) e o papel da mulher na sociedade foram abordados sem didatismo, mas com inteligência dramatúrgica.

No plano simbólico e cultural, a novela consolidou uma linha narrativa que bebe do realismo fantástico brasileiro, ao lado de sucessos como ‘Roque Santeiro’ (1985) e ‘Pedra sobre Pedra’ (1992). Criou também um novo arquétipo de protagonista feminina: forte, sedutora e complexa, influenciando gerações futuras de heroínas na televisão. Betty Faria, em uma das melhores atuações de sua carreira, eternizou Tieta com carisma e vigor, inscrevendo-se definitivamente no panteão das grandes atrizes da TV brasileira. Já Joana Fomm, em uma performance magistralmente caricata, deu vida a uma das vilãs mais célebres da história da teledramaturgia nacional.

Décadas após sua exibição original, e mesmo com a areia novamente soterrando Santana do Agreste com o fim da reprise, ‘Tieta’ segue lembrada com carinho e reverência. A novela marcou gerações, inspirou debates, renovou estéticas e mostrou que, sob o sol escaldante do sertão, é possível construir uma crítica social repleta de humor, sensualidade e inteligência. ‘Tieta’ é, enfim, uma poderosa alegoria do Brasil — com seus preconceitos, suas contradições, suas belezas e sua sede por liberdade.

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