Christopher Isherwood publicou, em 1939, ‘Adeus a Berlim’, uma coletânea de crônicas que narram suas experiências na cidade alemã durante a ascensão do nazismo nos anos 1930. O livro, de grande sucesso, serviu de base para o musical ‘Cabaret’, que, ao estrear na década de 1960, chocou plateias com sua abordagem ousada e politicamente carregada. A peça logo se tornou um fenômeno controverso, rendendo uma adaptação cinematográfica premiada e inúmeros revivals ao longo das décadas.
Apesar de seu conteúdo político contundente, ‘Cabaret’ é amplamente lembrado por seu erotismo e pela celebração da liberdade sexual, especialmente através de personagens como Cliff — baseado no próprio Isherwood — e Sally Bowles. Seu impacto foi revitalizado em tempos recentes por meio de plataformas como o TikTok, onde trechos de algumas de suas músicas mais famosas são frequentemente redescobertos por um público que, muitas vezes, desconhece o contexto histórico original. A montagem mais famosa talvez seja o revival de 1998, estrelado por Alan Cumming e Natasha Richardson. Essa versão rompe com a estética clássica da peça original e do filme e aposta numa encenação mais sensual, interativa e perturbadora. O Mestre de Cerimônias, antes retratado como uma figura caótica e quase etérea em seu pequeno fraque , transforma-se num hedonista provocador, mergulhado em orgias e excessos. Essa encenação também abandona qualquer sutileza ao tratar da ascensão nazista: enquanto o final da montagem original de 1966 sugeria o crescimento do fascismo como um alerta velado à plateia, o revival de Cumming escancara a tragédia — com o Mestre de Cerimônias sendo levado à morte em um campo de concentração no ato final da peça.
Esse renascimento moldou profundamente a forma como “Cabaret” passou a ser encenado, levando muitos a dissociar a obra de seu peso histórico. Apesar de mais fiel à estética da época retratada, a encenação priorizou o espetáculo erótico em detrimento da crítica política. A partir de então, ‘Cabaret’ deixou de ser “o musical sério e reflexivo sobre a ascensão do fascismo” para se tornar “o musical mais sensual da Broadway… com elementos de anti-fascismo”. A encenação de Cumming e Richardson foi replicada em diversas ocasiões, com o “Mestre de Cerimônias safado” tornando-se arquétipo recorrente — mais preocupado em explorar as posições em que poderia dar prazer às suas “duas damas” do que em provocar reflexão.
Diante disso, quando a produção de 2024 chegou à Broadway, muitos a julgaram inferior à de Alan Cumming. Tratava-se da primeira vez, em quase 40 anos, que “Cabaret” recebia uma montagem realmente original — tentando romper com a imagem erótica que o musical cultivou ao longo das décadas. A encenação de 2024 aposta no segredo: registros visuais são raros, tanto pelas regras do teatro onde é encenada quanto por sua proposta intimista. Em vez do glamour sensual, a montagem mergulha no caos e na decadência, retornando ao cerne político da narrativa. A ambientação e a caracterização são abstratas, desprovidas de filtros que suavizem a realidade. Em apresentações recentes , atores interromperam a cena para repreender a plateia que ria diante de uma fala antissemita, evidenciando que, para muitos, o choque é interpretado como piada — ou simplesmente não é compreendido.
O mesmo não se pode dizer da sensação do TikTok, o chamado “Cabaret Ucraniano”, atualmente em cartaz em Kyiv. A montagem, embora visualmente impressionante, é excessivamente abstrata e sexualizada — o exemplo perfeito de “estilo sobre substância”, em que a mensagem se perde em meio a exageros performáticos. Ainda assim, a produção viralizou nas redes, especialmente por conta da atuação de Ilya Choporov como o Mestre de Cerimônias. Seu visual foi replicado em inúmeros vídeos, tornando-se ícone digital em certas áreas do aplicativo . Muitos internautas chegaram a afirmar que viajariam à Ucrânia — um país em guerra há quase três anos — apenas para assistir à peça.
O contraste entre as versões de ‘Cabaret’ reflete um fenômeno inquietante: à medida que o espetáculo foi sendo despido a mensagem antifascista original diluiu-se em favor de estéticas novas com o passar das décadas. Isso dialoga com a ascensão global de governos de cunho autoritário no século XXI, em que discursos autoritários retornam ao centro do debate político — muitas vezes com roupagens novas e apelos emocionais. A recepção contemporânea de ‘Cabaret’, especialmente entre gerações mais jovens que redescobrem a obra por meio de plataformas digitais, expõe um descolamento preocupante entre forma e conteúdo. Ao ignorarem o contexto histórico da peça — ou ao tratá-lo como mera ambientação — essas audiências, muitas vezes mal informadas- ou de maneira mais franca, burras- refletem a superficialidade de uma era em que o passado é facilmente esquecido, distorcido ou estetizado.
De fato… a vida não passa de um Cabaré meu chapa