Diz a lenda que, ao esquecer o aniversário de casamento e irritar sua esposa Lilian, Walt Disney tentou acalmá-la com um presente inesperado: uma grande caixa embrulhada, que ele afirmou conter um chapéu ou uma roupa. Para surpresa de Lilian, dentro da caixa havia um filhote de Chow-Chow. Essa lembrança do fundador do estúdio, somada a um conto publicado em uma revista, deu origem a um dos projetos mais atemporais da Disney, que completa sete décadas em 2025.
“A Dama e o Vagabundo” narra a história de Lady, uma Cocker Spaniel que leva uma vida confortável ao lado de seus donos, “Querido” e “Querida”. Tudo muda quando o casal espera seu primeiro filho. Com a chegada de um vira-lata carismático conhecido como Vagabundo, Lady é conduzida a explorar o mundo além dos portões e coleiras. Vagabundo, por sua vez, se encanta com a cadelinha e começa a considerar abandonar seu estilo de vida despreocupado. Com personagens coadjuvantes cativantes, a história se desenrola sob o céu estrelado do início do século XX.
Foi o primeiro longa-metragem de animação da Disney produzido em Cinemascope, formato que permitiu uma exploração mais ampla das paisagens e cenários urbanos inspirados nos Estados Unidos da virada do século. A escolha técnica foi mais do que estética: ela ampliou o escopo narrativo, revelando os contrastes sociais vividos pelos personagens — dos quintais cercados por roseiras aos becos sombrios onde vivem cães abandonados. A criação consistente de atmosfera transforma esse longa em um deleite atemporal. Muitos — inclusive este que vos fala — o consideram um filme ideal para a época do Natal, seja por sua leveza, seja pelo seu calor emocional.
Embora frequentemente esquecido entre musicais grandiosos e fábulas modernas que redefiniram a animação, “A Dama e o Vagabundo” talvez seja um dos filmes mais “puros” do cânone animado da Disney. Sua narrativa, simples e clássica, explora amores proibidos e mostra como pequenos gestos podem causar grandes mudanças. Ao transportar uma história de amor entre classes sociais distintas para o universo canino, o filme oferece o encanto de um romance em desenvolvimento sem os dramas intensos comuns ao gênero.
A animação confere ao filme uma elegância nostálgica, com cenários detalhados e coloridos, tratados com especial carinho. Mesmo as cenas mais fantasiosas — como o icônico beijo entre Lady e Vagabundo durante o jantar à luz de velas — são carregadas de sofisticação, característica das produções da era de ouro do estúdio. O longa tem o cuidado de narrar a história do ponto de vista dos cães, raramente mostrando o rosto dos humanos, sejam eles os donos de Lady ou o funcionário do canil que sonha em transformar Vagabundo em sabão. A trilha sonora, composta por Oliver Wallace, com canções de Peggy Lee e Sonny Burke, adiciona ainda mais charme à narrativa. Quem não se lembra de “Bella Notte”, a balada cantada por Tony no jantar romântico?
Apesar de suas qualidades, o filme também apresenta aspectos que podem causar desconforto ao público contemporâneo. Em uma época em que estereótipos raciais eram comuns, a Disney criou a dupla de gatos siameses Si e Am, cuja representação é hoje vista como problemática. Além disso, a maneira como o canil e os animais destinados à eutanásia são retratados pode ser considerada brutal por espectadores mais sensíveis.
Ainda assim, o longa consolidou o prestígio da Disney em contar histórias universais por meio da animação e contribuiu para a humanização dos animais no imaginário popular, pavimentando o caminho para futuras produções com protagonistas caninos. Sua representação de um amor que desafia convenções sociais ainda ressoa em obras posteriores sobre opostos que se atraem.
“A Dama e o Vagabundo” permanece, portanto, como uma obra elegante e atemporal. Com simplicidade, sensibilidade e um toque de rebeldia, transforma uma história de cães em uma poderosa metáfora sobre convivência, empatia e descoberta. E talvez por isso continue a emocionar gerações, lembrando-nos de que o amor verdadeiro — seja entre cães ou humanos — nasce, muitas vezes, nos becos improváveis da vida, sob a luz tímida de uma vela e ao som de um acorde italiano.