“Hello, Dolly!”, de 1969, abalou o mundo dos musicais para sempre. Na década de 1970, os filmes musicais passaram a ser o oposto de seus antecessores: deixaram de ser coloridos, charmosos e escapistas para se tornarem sombrios, com personagens desiludidos e tramas carregadas de crítica social. Um ótimo exemplo desse novo estilo é “Cabaret”, dirigido por Bob Fosse. “Cabaret” é um musical de 1966 que retrata a história de Clifford Bradshaw e de um grupo diverso de personagens nos últimos anos da República de Weimar. Enquanto mergulhamos em suas vidas e dramas pessoais, testemunhamos a ascensão do Partido Nazista e os efeitos desse avanço sobre aquela pequena comunidade. Ousado para a época, o espetáculo foi indicado a 11 prêmios Tony e conquistou 8 estatuetas.
Em 1971, Bob Fosse assumiu a direção da adaptação cinematográfica. Conhecido por suas coreografias meticulosas e ambiciosas, Fosse não era a escolha preferida dos estúdios, principalmente após a recepção morna de seu filme anterior, “Sweet Charity” (1969). Ainda assim, ele conseguiu convencer os executivos de que era o nome ideal para dirigir o longa, que seria lançado no ano seguinte.Liza Minnelli e Joel Grey se juntaram ao elenco. Grey já havia ganhado um Tony por sua interpretação do Mestre de Cerimônias do Kit Kat Klub — o cabaré onde os números musicais se desenrolam. Já Liza, filha da lendária Judy Garland e do cineasta Vincent Minnelli, teve em “Cabaret” a chance de brilhar como a cantora Sally Bowles. O personagem de Clifford foi adaptado para o cinema, transformando-se no escritor britânico Brian Roberts.
O resultado foi um sucesso absoluto de público, crítica e premiações. No Oscar de 1973, “Cabaret” recebeu 10 indicações e levou 8 estatuetas, incluindo Melhor Atriz (Liza Minnelli), Melhor Ator Coadjuvante (Joel Grey) e Melhor Direção (Bob Fosse). As únicas categorias que o filme não venceu foram Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme — este último entregue a um certo “O Poderoso Chefão”.
Quase 50 anos depois, “Cabaret” continua mais atual do que nunca em diversos aspectos. Hoje, faremos uma pequena análise desse musical político e provocativo.
Willkommen – O tempo e o lugar em que o filme se passa
“Berlim, 1931.”
Antes da ascensão de Hitler, a Alemanha vivia um período de instabilidade política e econômica, mas também era o centro do que muitos chamam de “a primeira revolução sexual”. Poucos lugares no mundo eram tão liberais em relação à sexualidade e ao gênero quanto a Berlim da República de Weimar. Pessoas de toda a Europa iam à cidade para explorar sua identidade na vibrante vida noturna local. O autor Christopher Isherwood — cuja obra “Goodbye to Berlin” inspirou o musical — viveu nessa Berlim para explorar sua homossexualidade.
Os cabarés da cidade serviam como espaço para sátiras políticas afiadas e imitações mordazes de figuras públicas. Ao mesmo tempo, eram berço para artistas iniciantes, como Louise Brooks e Marlene Dietrich. No entanto, durante o regime nazista, muitos desses estabelecimentos foram destruídos.
A tensão entre diferentes ideologias crescia rapidamente, com embates violentos entre comunistas e nacional-socialistas. O antissemitismo também se espalhava como uma praga silenciosa, prenunciando a tragédia que se seguiria.
Mein Herr – A linguagem do musical
Bob Fosse não era um novato no mundo dos musicais — e este filme é uma prova de seu gênio. Suas coreografias são hipnotizantes e exigem precisão, força e foco. Um exemplo marcante é “Mein Herr”, número que impressiona pelo controle físico de Liza Minnelli e das dançarinas, equilibrando-se e girando sobre cadeiras com notável elegância.
Chamado por muitos de “o musical para quem odeia musicais”, “Cabaret” sofreu grandes transformações em sua adaptação para o cinema. Boa parte das subtramas do espetáculo original foi descartada; Sally Bowles ganhou mais profundidade e muitas músicas foram removidas ou reformuladas. No teatro, as canções impulsionam a narrativa e revelam os sentimentos dos personagens. No filme, porém, 9 das 10 principais músicas acontecem exclusivamente no palco do Kit Kat Klub, funcionando como comentários visuais sobre os acontecimentos da trama.
Exemplos dessa fusão entre narrativa e performance incluem:
-“Maybe This Time”, quando Sally acredita que finalmente será amada;
-“Money, Money”, em que ela tenta seduzir o rico Maximilian;
-“Cabaret”, em que ela decide ficar em Berlim, iludida por sonhos inalcançáveis.
Essa escolha deu ao filme um realismo maior e uma estrutura mais coesa. Mesmo sem os números musicais, a trama se sustentaria — mas perderia grande parte de seu charme. Essa abordagem influenciaria diversos diretores no futuro do gênero musical.
Tomorrow Belongs To Me – os temas, dilemas e questões tratados no filme.
“It’ll all work out. It’s only politics, and what does that got to do with us?”- Sally Bowles
No início do filme, a presença dos nazistas é quase invisível e vista com desprezo pelos frequentadores do cabaré. Aos poucos, no entanto, o ambiente vai mudando: o Kit Kat Klub, como a Alemanha, passa a aceitar e até abraçar a ideologia nazista. No clímax do longa, o cabaré se tinge de vermelho — agora com os nazistas como principais clientes.
A cena mais marcante nesse sentido é “Tomorrow Belongs to Me” — a única música fora do cabaré. Um jovem entoa uma canção nacionalista, e, conforme o coro cresce, descobrimos que ele é um membro da Juventude Hitlerista. Pessoas comuns, encantadas com a promessa de ordem e futuro, passam a cantar junto. Em tempos de polarização política, essa cena ganha novos significados e evoca um alerta inquietante.
O filme também aborda a bissexualidade de forma pioneira. Brian, o escritor britânico, inicia a trama como alguém reprimido, mas acaba se envolvendo tanto com Sally quanto com Maximilian. Foi uma das primeiras vezes que um personagem bissexual foi retratado de forma complexa e positiva no cinema mainstream.
“Cabaret” também é um retrato dos vícios e das ilusões. Sally Bowles vive mergulhada em excessos: álcool, sexo, sonhos inalcançáveis. Liza Minnelli conhecia bem essa realidade — sua mãe, Judy Garland, havia morrido poucos anos antes, vítima de uma espiral de autodestruição muito semelhante à de sua personagem. A performance final de Sally em “Cabaret” é a imagem perfeita dessa alienação: ela canta, brilhante e entregue, enquanto o mundo desmorona ao seu redor.
“Life is a Cabaret, ol’ chum” — conclusão.
“Cabaret” é um filme político, magnético e provocador. Bob Fosse criou uma obra-prima estética e narrativa, em que cada detalhe importa — da iluminação ao figurino, da encenação à coreografia. As atuações permanecem entre as mais icônicas da história do cinema, e as músicas, eternas no universo dos musicais. Ao mesmo tempo trágico, vibrante e profundamente atual, “Cabaret” é um filme único. E merece ser tratado como tal.