A obra-prima de Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão, é uma referência essencial ao tratar do Realismo Fantástico. Ambientado na Colômbia dos séculos XIX e XX, o livro narra a saga de sete gerações da família Buendía no excêntrico vilarejo de Macondo, onde o impossível se torna realidade. Ao longo dos anos, Macondo e os Buendía enfrentam o confronto entre o real e o fantástico, lidando com maldições familiares e as transformações socioculturais da Colômbia, além de serem marcados pela loucura e pela guerra. Cem Anos de Solidão deu a Márquez reconhecimento internacional, culminando no Prêmio Nobel de Literatura. Apesar de seu sucesso, o autor colombiano sempre foi contrário a adaptações de sua obra, embora esta tenha inspirado produções de sucesso no gênero, como folhetins brasileiros e a animação americana Encanto.
Mais de dez anos após a morte de García Márquez, a Netflix lança a primeira adaptação oficial do livro. Graças a uma parceria entre o serviço de streaming e a família do autor, a série busca respeitar fielmente o material original e suas profundas conexões com as raízes latinas que cativaram gerações de leitores. Em sua versão televisiva, Macondo ganha vida, repleta de seus ilustres cidadãos, sob a narrativa de um personagem misterioso — um detalhe que os leitores da obra certamente reconhecerão.
Como um dos maiores expoentes da literatura latina no cenário internacional, Cem Anos de Solidão exige um cuidado cultural rigoroso. A produção conta com uma equipe predominantemente latino-americana e foi gravada em solo colombiano. A direção de arte, assinada por Bárbara Enríquez e Eugenio Caballero, transporta os espectadores para os séculos XIX e XX, apresentando cenários que evoluem de construções simples de pau a pique para uma arquitetura característica do período. Os figurinos de Catherine Rodríguez são fundamentais para o avanço narrativo e a transformação dos personagens, com destaque para Úrsula Iguarán. A matriarca Buendía, embora assombrada por premonições centenárias, emerge como uma líder forte e resiliente, guiando sua família em constante crescimento.
Os elementos fantásticos de Macondo, como figuras flutuantes e ciganos misteriosos, ganham vida através de uma combinação de efeitos práticos e computação gráfica, aliados a atuações intensas de seu elenco. Os diretores da série compreendem que a chave para uma narrativa ideal de Realismo Fantástico é a construção de um mundo real tão vívido quanto o fantástico. Recursos como jogos de câmera e o uso frequente de espelhos enriquecem essa experiência visual.
Embora determinados aspectos da história possam suscitar questionamentos, sua atemporalidade e profundidade moral tornam a série uma imersão em questões políticas e éticas. A trama utiliza analogias e eventos dramatizados para abordar temas como classe social, sexismo, repressão e expressão cultural latina. Um exemplo notável é a adaptação fictícia do “Massacre das Bananeiras”, um dos episódios mais marcantes do livro, enquanto a primeira temporada se concentra no conflito entre conservadores e liberais.
Com a segunda temporada prevista para explorar a conclusão de Macondo e da família Buendía, a primeira parte de Cem Anos de Solidão oferece uma adaptação fiel a um dos maiores clássicos da literatura contemporânea. A série representa uma oportunidade para que novos públicos descubram as bênçãos e maldições dessa cidade repleta de segredos.