Mitos da Grécia Antiga moldaram muitas das narrativas conhecidas pelo mundo moderno. Heróis poderosos e deuses vingativos serviram de base para trabalhos artísticos na literatura, teatro e cinema. Em 2019, os palcos da Broadway receberam uma reimaginação da tragédia de Orfeu e Eurídice, que se revelou um dos maiores sucessos críticos do teatro. “Hadestown”, o musical premiado de Anaïs Mitchell, é um espetáculo técnico e narrativo.

Quando Eurídice escolheu partir para Hadestown após uma vida de dificuldades, seu amado Orfeu viaja até o submundo para recuperá-la. No domínio de Hades, o músico negocia com o Deus um possível retorno de Eurídice ao mundo dos vivos. O irmão de Zeus concorda, mas impõe uma condição: Orfeu deve ir à frente de Eurídice e não pode olhar para trás; caso contrário, ela retornará ao mundo dos mortos para sempre. Consumido pela dúvida, o jovem se vira e perde a amada para sempre.

Uma história atemporal ambientada em um mundo cuja estética remete ao período da Grande Depressão, “Hadestown” transforma os reinos dos deuses em um bar minimalista, fábricas cinzentas e mundos de sonhos obscurecidos. Narrado pelo deus Hermes, o conto se passa em um cenário pós-revolução industrial, traçando paralelos — alguns não tão sutis — com as expectativas em relação ao governo do Presidente Donald Trump, com Hades sendo retratado como um frio capitalista.

Uma das grandes mensagens do musical é o amor, seja ele novo ou antigo. Além da história de amor entre o filho de Apolo e uma ninfa, temos a história de amor entre Hades e Perséfone, um relacionamento que aos poucos se deteriorou e que eles tentam reatar, sem saber como. Toda e qualquer ramificação desse sentimento é explorada em “Hadestown”, seja por suas narrativas melancólicas ou letras afiadas.

O papel de Orfeu, um músico sonhador, representa as pessoas que veem o mundo como gostariam que ele fosse, enquanto céticos como Eurídice veem o mundo pela triste realidade que é, procurando desesperadamente escapar desse círculo de infelicidades.

A maneira como Anaïs Mitchell incorporou olimpianos e demais criaturas acrescenta um toque de modernidade a esses mitos da Grécia Antiga. Hades é um empresário frio, e Perséfone é uma festeira durante o verão, temendo o som do apito do trem que a levará de volta ao seu obscuro lar. Hermes é interpretado como um locutor de rádio que narra esta triste história, com cada novo intérprete — como André De Shields e Lillias White — adicionando algo novo ao personagem. As Parcas, as três irmãs que tecem o fio da vida, também integram a história, servindo como cantoras do espetáculo.

Em termos técnicos, a peça surpreende, com o palco se expandindo de diferentes formas durante a história para representar a viagem de Orfeu ao submundo. “Hadestown” se tornou um fenômeno, sendo um dos musicais mais conceituados da atualidade e levando para casa 8 Tony Awards, incluindo o de Melhor Musical.

“Hadestown” mostra que sempre há novas maneiras de contar uma velha história, com um elenco cativante e músicas com alma. Todos podem saber o quão trágico foi o fim desses amantes, mas isso não impede de alimentar esperanças de que, no fim do dia Orfeu não irá se virar e perder Eurídice.