A diretora Julia Ducournau havia chamado atenção em 2016 com “Grave”, filme que teve o clamor da crítica e que chocou não apenas aos desavisados, mas também àqueles que já esperavam uma certa excentricidade da produção. “Titane” não é diferente, mas inova o formato e ainda surpreende de maneira positiva. Acompanhamos Alexia (Agathe Rousselle), uma mulher que se submeteu a uma cirurgia em sua infância devido a um grave acidente de carro, que ocasionou ao implante de uma placa de titânio em seu crânio. Após uma breve introdução a esse conceito, acompanhamos um pouco mais sobre os efeitos colaterais causados pelas atitudes da protagonista.
O filme não poupa imagens perturbadoras e reforça seu propósito dessa maneira. Percebe-se uma urgência em impactar, o que para alguns pode ser cansativo, mas para outros genial. O roteiro sempre está a frente de seu espectador, em sua maioria entregando situações contrárias ao esperado, mesmo que a insanidade já esteja aplicada ao imaginário desde seus primeiros momentos. Quando chega ao seu extremo, ele o eleva de maneira surpreendente, chocando a cada minuto e descontruindo toda a sua progressão. Nunca estamos conscientes, em alguns momentos é comum cogitar, mas a ousadia frequente nos faz questionar tudo que está diante dos nossos olhos.
Faz uma forte metáfora à dismorfias corporais e às necessidade de se adequar a um padrão imposto por aqueles ao nosso redor. É a sombra de um corpo feminino sendo distorcido, com cada fragmento sendo encaixado durante o desenrolar dos acontecimentos. Elevando o olhar, é possível vislumbrar até mesmo metáforas sobre a transgeneridade nos conflitos da protagonista quanto a sua autoidentificação, especificamente quando observamos o todo ao fim do último ato. Quando Alexia expõe seu lado sexual pela primeira vez, percebemos um desconforto, onde o associamos ao seu corpo logo em seguida. Apesar da sua extrema confiança e de sua personalidade distinta, ao mesmo tempo em que ela eleva o seu eu, ela se sente como um nada. Ela passa por tudo de maneira insana, o que a cansa, até que o seu corpo pede em desespero por um alívio, por uma mudança que a torne mais livre diante de si mesma. Essas divagações são compartilhadas de maneira certeira, espantando mais e mais a cada momento.
A cinematografia pontual é um dos maiores destaques de Julia, que consegue casar sua direção de maneira bem distribuída entre enredo e imagens expostas em tela. É quase como se estivéssemos assistindo a um quadro animado onde cada momento transpira arte em sua forma mais pura. Apesar de compor características de seu último trabalho, aqui o ritmo se encontra na frenesi, deixando os longos momentos de contemplação e interpretação de lado, optando por um caminho de risco onde o fôlego é sempre solicitado. É o oposto de “Grave”, mesmo que suas influências sejam perceptíveis.
“Titane” é uma obra instigante, peculiar e que vai perturbar seu psicológico. Mesmo com experiência, ainda é possível escandalizar-se com a ótica de Ducournau, que entrega aqui o seu inovar. Usar violência gratuita é algo que vemos constantemente no cinema, mas dar contexto à ela é uma tarefa difícil. É possível interpretar o manifestado de diversas maneiras e acredito que seja bastante complicado estabelecer um consenso, contudo essa indeliberação favorece a experiência e transforma o óbvio em algo incabível nesse roteiro. Espere de tudo, mas não pense que você o desvendará por completo. Foi como se eu estivesse assistindo ao melhor filme da minha vida por alguns minutos, e experiências como essas não são frequentes no audiovisual.